Para mim, pedirem-me para desenhar o que quer que seja, uma jarra, por exemplo, sempre me pareceu igual à exigência de que abrisse uma janela e voasse. Não é falta de vontade ou motivação, são só as Leis da Física que parecem congeminar contra mim, sem eu saber porquê.

Por isso, relativamente às artes visuais, sobra-me olhar. Mas a inaptidão como que por ironia, pode ser fonte de maravilha, de mistério ou mesmo de bruxaria. E é assim que me sinto, relativamente à Ana Sofia Santos e face a quem partilhe do seu talento, sinto-me maravilhado, interpelado, enfeitiçado.

A meu ver, a arte da Sofia distingue. Distingue entre o traço e o papel, entre o branco e o escuro, entre p pleno e o vazio, entre a génese e a degeneração, entre a voz e o silêncio, entre o projeto e o vestígio. mas escolhe também entre o traço e os traços, entre o escuro e a escuridão, entre géneses, entre silêncios, entre vestígios.

Às vezes, na arte da Sofia, são escadas que se transformam em nós fortuitos de madeira crua e que por momentos deixam de ser degraus e passam a ser só textura. São sombras em estado de pura projeção geométrica. São pontes construídas muito antes dos lufares que irão supostamente juntar. São perspetivas de dentro das coisas, com um ângulo de visão impossível para meros seres finitos. São arranha-céus que ficaram cativos na rocha, inabitáveis, sem nunca arranharem o céu. São recortes de horizonte debruados com neve sombria. São esboços de cidades que para sempre ervilham na edificação. São as portas em ferro trabalhado, guardando inutilmente palácios apenas imaginados. São pormenores de coisas muito maiores ou muito mais pequenas em desequilíbrio como um verdadeiro solo de jazz.

São distinções. São diferenças. Encontramos nesta Sofia, mas noutras Sofias também.

Na verdade, a distinção é a qualidade mais indispensável da Ciência. A qualidade indispensável é aliás apenas essa, a de estabelecer uma diferença. Sem diferenças não se pode pensar, como a Sofia já descobriu.

Hoje é o tempo das distinções que diferenciam o que é igual, a mentira e o compridas da verdade, a mentira e a pós-verdade, a mentira e os factos alternativos. mas sem diferenças não há espaço, nem tempo, nem causa, nem arquitetura, nem timbre, nem incógnita, nem arte.

Por isso, quando digo que a arte da Sofia é a arte da distinção, a arte da diferença, estou a considera-la absolutamente relativa, e nunca absoluta, nunca completada, nunca completa. Uma arte incompleta como uma rocha, arriba ou uma duna.

Incompleta como um guião de filme, que só incompleto permite a realização. Talvez seja a própria arte como Sísifo para sempre condenada a empurrar a inspiração até ao cume da montanha ou como Penélope que com o ardil do desfazer à noite o manto que teceu de dia, permite manter o fiel propósito.

​Mas pode-se ser exaustivo em cada fragmento. Para exemplos c´celebres, tomem-se os casos de Clerissau ou Piranesi que desenharam com pormenor as ruínas dos Banhos de Caracalla. E a arte da Sofia pode ser também assim. E desenha fragmentos de poesia como Safo.

Muitos artistas desenham tudo da mesma forma, mesmo que sejam objetos muito diferentes, tudo sob o mesmo prisma, sempre cativos de si próprios. A Sofia é o contrário disso - o que faz em investigação, em desenho, em jazz é perseguir o mesmo ideal, explorar sempre a mesma ideia, é certo, mas de formas muito diferentes. A ideia que a Sofia persegue e que a persegue é, a meu ver, a ideia de que tudo é instável, tudo é transitório, tudo é imponderável. Sejam as categorias do nosso pensamento, sejam os solos de jazz, sejam os traços e as linhas. A Sofia sabe que Pierre Menard (o autor inventado de Borges) é mesmo o verdadeiro autor de um D. Quixote moderno, porque o D. Quixote de Cervantes (mas também o de Menard) é hoje irredutível. E é isso que faz com que o universo de todos os D. Quixote possíveis em sucessivas eras seja belo e eterno.

Às vezes são escadas que se transformam em pura projeção geométrica. São degraus que se tornam em madeira crua, fortuitamente. São projecções geométricas em estado de sombra. São pontes que sobreviveram aos lugares que antes juntaram. São esboços de cidades que fervilham no abandono. São substâncias e entidades, primeiro em desequilíbrio, e depois, aceitando por fim a gravidade, caindo para sempre. São muito mais do que riscos num papel. São apenas riscos num papel.

   

Leonel Garcia-Marques, April, 2017

Lançamento do livro Melting Neighborhood, Livraria Tigre de Papel, April, 2017, Concepção e Edição Tiago Casanova e Sofia dos Santos. Produção XYZ Books.